Dupla Excepcionalidade: Quando a Superdotação se Encontra com o TDAH e TEA
- Fabiane Pinto - Neuropsicóloga

- 27 de out.
- 5 min de leitura
Nem sempre o alto potencial vem acompanhado de facilidade.
Muitas pessoas com altas habilidades se deparam, desde cedo, com desafios que parecem contraditórios: um pensamento acelerado que dispersa, uma curiosidade infinita que esgota, uma sensibilidade que encanta, mas também sobrecarrega.

São indivíduos que sentem tudo no “volume alto”: ideias, emoções, percepções.
Podem se emocionar com uma paisagem e, minutos depois, mergulhar em um raciocínio complexo sobre o universo.
A mesma mente que se fascina por aprender é a que se frustra com a lentidão dos outros, ou se perde em detalhes.
Essa dualidade entre potência e vulnerabilidade é uma das marcas da dupla excepcionalidade — um termo que descreve pessoas que possuem superdotação associada a transtornos do neurodesenvolvimento, como TDAH ou TEA.
Superdotação e Altas Habilidades: além do QI
Quando falamos em altas habilidades/superdotação, muitas vezes pensamos apenas em “inteligência acima da média”.
Mas o conceito vai muito além disso.
A superdotação envolve formas intensas e complexas de perceber o mundo (cognitiva, emocional e até sensorial).
Na psicologia, há um termo que explica bem essa experiência: a sobre-excitabilidade, proposto pelo psicólogo Kazimierz Dabrowski.
Ele descreveu como pessoas com altas habilidades vivenciam o mundo com intensidade ampliada, ou seja, elas pensam, sentem e reagem mais profundamente que a maioria.
Essa intensidade pode ser cognitiva (curiosidade e rapidez de raciocínio), emocional (empatia e sensibilidade), imaginativa (criatividade, liderança), sensorial (percepções aguçadas) ou psicomotora (energia física elevada).
Por isso, a superdotação não é apenas uma aptidão: é também uma forma de existir que exige compreensão e equilíbrio.
E quando essa mente intensa convive com outros desafios, como desatenção, impulsividade ou dificuldade de interação, surge o que chamamos de dupla excepcionalidade.
O que é Dupla Excepcionalidade
A dupla excepcionalidade (ou twice-exceptional, como é conhecida na literatura internacional) descreve pessoas que apresentam Altas Habilidades/Superdotação e, ao mesmo tempo, algum Transtorno do Neurodesenvolvimento, como o TDAH (Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade) ou o TEA (Transtorno do Espectro Autista).
Essas pessoas vivem uma combinação única de forças e desafios: um alto potencial de raciocínio, criatividade e percepção coexistindo com dificuldades de regulação, foco ou socialização.
Não há contradição entre esses aspectos, há sim, complexidade.
Muitas vezes, a alta capacidade cognitiva mascara os sintomas do transtorno, atrasando o diagnóstico; em outras, as dificuldades de atenção ou interação ofuscam o talento, gerando frustração e baixa autoestima.
Por isso, compreender e identificar a Dupla Excepcionalidade exige olhar clínico sensível, interdisciplinar e livre de estereótipos.
Quais são os sinais e características da Dupla Excepcionalidade
Os sinais da dupla excepcionalidade aparecem em diferentes dimensões: cognitivas, emocionais e sociais.
Cognitivas: pensamento rápido, hiperfoco em temas de interesse, raciocínio complexo, dificuldade de se concentrar em tarefas rotineiras, sensação de “mente sempre ligada”.
Emocionais: perfeccionismo, sensibilidade acentuada, autocrítica elevada, flutuações de humor e crises de frustração.
Sociais: dificuldade de pertencimento, impaciência com regras ou ritmos lentos, tendência ao isolamento, ou busca por ambientes altamente estimulantes.
Esses aspectos não se manifestam de forma linear, eles se alternam, às vezes no mesmo dia.
A pessoa pode ser profundamente criativa e, ao mesmo tempo, procrastinar projetos importantes.
Ela pode destacar-se em análises complexas, mas tem dificuldade em organizar o cotidiano.
Dupla Excepcionalidade em Adultos: como reconhecer
Muitos adultos só descobrem sua dupla excepcionalidade na vida adulta, após anos de autocrítica, sobrecarga e esgotamento.
É comum ouvirem desde a infância frases como “você é tão inteligente, mas tão distraído” ou “poderia ir longe, se fosse mais concentrado”.
Na fase adulta, esses traços aparecem como um ciclo de hiperprodutividade e exaustão, dificuldade de foco, autopercepção distorcida e sensação constante de “não estar à altura”, ou seja, “sentimento de ser uma fraude”.
Reconhecer esse funcionamento não é sobre rotular-se, é sobre entender que potencialidade e vulnerabilidade podem coexistir.
Dupla Excepcionalidade e TDAH: quando o pensamento acelerado encontra a desatenção
Pessoas com altas habilidades e TDAH convivem com um cognitivo que processa de forma mais rápida, do que o corpo acompanha.
Podem passar horas imersas em uma ideia, e no instante seguinte, perder o interesse.
O mesmo foco intenso que gera insights brilhantes pode se tornar desorganização e ansiedade quando falta estrutura.
O TDAH traz desafios na regulação da atenção, motivação e do gerenciamento do tempo, enquanto as altas habilidades amplificam o fluxo de ideias e a busca constante por estímulos.
Essa combinação cria um paradoxo: muita capacidade e pouco foco, muitos planos e pouca execução.
Não se trata de preguiça ou falta de disciplina, e sim de um cérebro que precisa de estratégias específicas para canalizar seu potencial.
A avaliação neuropsicológica ajuda a distinguir o que é traço de TDAH e o que é característica das altas habilidades, permitindo intervenções mais assertivas.
Dupla Excepcionalidade e TEA: quando o raciocínio lógico e a sensibilidade coexistem
Já na combinação entre superdotação e TEA (Transtorno do Espectro Autista), o destaque está na coexistência entre raciocínio lógico avançado e sensibilidade extrema.
Esses indivíduos costumam perceber padrões e detalhes que outros não veem, têm forte necessidade de coerência e pensamento estruturado.
Ao mesmo tempo, podem se sentir sobrecarregados por estímulos sociais, emocionais ou sensoriais.
O TEA e as altas habilidades não se anulam, apenas coexistem de forma única.
Ambientes estruturados, previsíveis e acolhedores ajudam esses indivíduos a expressar plenamente suas capacidades.
Em alguns casos, a combinação se torna ainda mais complexa, dando origem à chamada Tripla Excepcionalidade, quando Altas Habilidades, TDAH e TEA coexistem.
É um perfil raro e exige avaliação altamente individualizada, pois um traço pode mascarar ou intensificar o outro.
Outras combinações possíveis (dislexia, disortografia, discalculia, depressão, ansiedade etc)
Além do TDAH e do TEA, é possível que pessoas com superdotação apresentem de forma comórbida, Transtornos Específicos de Aprendizagem (TEAp), termo que, segundo o DSM-5, substitui expressões como dislexia, discalculia e disortografia.
Esses transtornos não fazem parte da definição de dupla excepcionalidade, mas podem coexistir, gerando frustração e impacto emocional significativo.
Outro ponto importante é que ansiedade e depressão, ou seja, Transtornos do Humor, embora não sejam neuro divergências, aparecem com frequência nesses perfis. O mesmo se aplica para Transtornos de Personalidade.
A alta sensibilidade e a autocrítica podem potencializar sintomas emocionais, levando à exaustão e à sensação de inadequação.
Nesses casos, o cuidado clínico precisa integrar saúde mental, cognição e ambiente, não apenas tratar sintomas isolados.
Avaliação Neuropsicológica: o olhar sensível e integrador
Compreender a dupla excepcionalidade envolve por um olhar clínico que acolha, e não rotule.
A avaliação neuropsicológica é uma ferramenta essencial nesse processo:
permite mapear funções cognitivas (como atenção, memória e raciocínio), bem como aspectos emocionais e sociais.
Mais do que identificar diagnósticos, a avaliação oferece autoconhecimento.
Ajuda o indivíduo a compreender seu funcionamento, reconhecer seus limites e transformar vulnerabilidades em estratégia.
“Avaliar é compreender a pessoa em sua totalidade, seu potencial e desafios. O diagnóstico é o ponto de partida, não o ponto final.”
Um convite à compreensão
Se você se reconhece nesse vai e vem entre brilho e cansaço, profundidade e dispersão, saiba que há explicações e caminhos possíveis.
A dupla excepcionalidade não é um obstáculo, mas um convite a se compreender de forma ampla e gentil.
Agendar uma avaliação neuropsicológica pode ser o primeiro passo para transformar o caos interno em clareza, e fazer das suas singularidades uma força.
Referências:
Baum, S. M., Reis, S. M., & Burke, E. (2014). An Operational Definition of Twice-Exceptional Learners. Gifted Child Quarterly.
Davis, G., & Robinson, A. (2018). Twice-Exceptional Children and the Neurodiversity Paradigm. Oxford University Press.
Roama-Alves, C., & Nakano, T. (2022). Dupla Excepcionalidade. Ed. Juruá.
American Psychiatric Association. (2013). DSM-5 – Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.
Dabrowski, K. (1972). Theory of Positive Disintegration.



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